Com as diversas plataformas de streaming ao alcance de um click, via controle remoto, temos à nossa disposição um enorme acervo de produtos culturais – filmes, músicas, audiobooks, podcasts. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, nem tudo o que queremos ver ou ouvir está disponível, já que sempre falta muita coisa nesse incrível catálogo. Por isso, é sempre recomendável – e pode ser algo também prazeroso –, garimpar as plataformas, com ou sem indicações via algoritmo. De repente, podemos descobrir joias raras na programação.
Esta semana, ao explorar o acervo da Apple TV, encontrei uma dessas obras-primas “escondidas” entre tantas opções: “Eu Não Sou Seu Negro” (I Am Not Your Negro), o magistral documentário do produtor, diretor e roteirista Raoul Peck, lançado em 2016. O cineasta haitiano se vale da raiva atemporal do escritor norte-americano James Baldwin para dar vida e força a uma história de experiência negra na América, dos estereótipos de Hollywood à brutalidade policial.
“Ser negro neste país e ser relativamente consciente é estar com raiva quase o tempo todo. Então o primeiro problema é como controlar essa raiva para que ela não destrua você.” Foi assim que Baldwin explicou, em 1961, a situação dos negros nos Estados Unidos, ao participar de um painel no rádio, em companhia de Lorraine Hansberry e Langston Hughes, dois outros luminares literários negros. Uma verdade tão concisa quanto jornalística que vemos no documentário – ou seja, de forma direta, sem rodeios, na voz e imagem de James Baldwin.
Por isso, é essa raiva atemporal, inabalável, que Raoul Peck vai mostrar repetidamente no documentário para nos fazer ver que ela é mesmo e plenamente justificada e inseparável da experiência americana.
O documentário de Peck parte do livro inacabado de Baldwin, Remember This House, que pretendia falar das vidas e mortes de três líderes dos direitos civis nos Estados Unidos: Martin Luther King Jr., Malcolm X e Medgar Evers, que também eram seus amigos. Além do livro, Peck teve acesso a todo o arquivo do autor e usa fotografias e clipes de televisão de Baldwin com essas três figuras emblemáticas da luta dos negros nos anos 1960. Desse modo, pode lançar luz a seus relacionamentos, mas também usa fotos dos homens em lugares semelhantes, mas separados, para criar a ilusão de que eles estavam juntos em momentos em que não estavam, o que torna tudo ainda mais inquietante e enriquecedor. Esse truque, tão bem utilizado e pertinente, é também um convite para refletirmos como os fatos da história se dão quase sempre no tempo, com significados interligados, ainda que não ocorram no mesmo espaço.
À presença física de Baldwin no documentário, via imagens do farto material de suas participações em eventos, debates, painéis e palestras, Peck acrescenta o texto escrito por Baldwin em seu livro inacabado e diversas passagens e ideias de The Devil Finds Work, livro de Baldwin sobre cinema, de 1976. Testemunhamos, com o escritor, sua incapacidade de encontrar um homem parecido com seu pai na fábrica de sonhos de Hollywood, exceto por um prisioneiro choroso que se parece com ele – o que é crucial para a compreensão da raça na América.
Um grande achado do filme é fazer as palavras do grande escritor ganhar vida com a voz rouca e abafada de Samuel L. Jackson, em magistral performance. O resultado é impressionante, porque sentimos que a narração é mesmo de Baldwin.
Com esse fio condutor, o principal argumento do documentário de Peck se revela na desconexão entre o que os americanos ouvem que o país representa e o que ele realmente é para milhões. Os Estados Unidos que representam um lugar onde todos são livres e uma terra de oportunidades, mas que para muitos é o lugar onde a polícia, paga com os impostos dos cidadãos, tem uma probabilidade desproporcionalmente maior de matá-lo se você for negro.
* “Eu Não Sou Seu Negro” pode ser alugado tanto na Apple TV como no Prime Vídeo.
Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista e editor de Cinema do Estado da Arte, do Estadão.
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