“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão;
começo a suspeitar que é um continente.”
— Machado de Assis, em O Alienista
Uma advogada revelou que atendeu uma cliente que deseja regulamentar judicialmente a guarda de uma boneca reborn — brinquedo hiper-realista que simula um bebê humano — após o término de um relacionamento. Mais do que uma anedota ou bizarrice moderna, o caso escancara o quanto o direito está sendo convocado a lidar com novas formas de afeto, posse e subjetividade em um mundo cada vez mais digitalizado e emocionalmente líquido.
Segundo a advogada Suzana Ferreiira, a cliente “formou uma família” com o parceiro e a boneca.O vídeo está disponível logo abaixo — convém você assisti-lo na íntegra para entender o problema.
Após o rompimento, o ex-companheiro deseja manter contato com o brinquedo — não por apego material, mas por vínculo emocional. O impasse envolve ainda a divisão dos custos do “enxoval”, a monetização de um perfil no Instagram criado para a boneca e a disputa sobre a administração desse ativo digital.
Essa situação pode parecer cômica, mas é profundamente sintomática. Para o sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos na era da modernidade líquida, marcada pelo colapso dos vínculos sólidos — como família, comunidade, tradição e instituições — substituídos por conexões frágeis, mutáveis e voláteis. A relação com a boneca reborn reflete esse esvaziamento: o afeto que antes estava centrado em relações humanas agora se transfere para um simulacro, que parece mais estável e “controlável” do que as relações reais.
Ao mesmo tempo, essa boneca não é apenas um objeto — ela produz conteúdo, engajamento, monetização. Ganha status de “sujeito patrimonial”, e o que está em disputa não é apenas um brinquedo, mas um ativo digital com valor econômico e simbólico. Surge aí uma fronteira tênue entre afeto e propriedade, entre amor e empreendedorismo emocional, entre o imaginário familiar e o capital de influência.
É nesse cenário que também vale trazer Pierre Lévy, pensador francês que via na internet e nas redes digitais o embrião de uma “noosfera” — um novo estágio de evolução humana onde o conhecimento e a inteligência coletiva se ampliariam, promovendo colaboração, empatia e novas formas de democracia. O que vemos hoje, porém, é uma distorção dessa promessa: a inteligência coletiva se fragmentou, e o espaço digital se tornou, muitas vezes, um palco para simulações de afeto, personalidades fabricadas e disputas simbólicas que transbordam para o mundo jurídico.
O caso da bebê reborn é, portanto, emblemático da nossa era: nele convergem a liquidez das relações descrita por Bauman, o imaginário digital previsto (e talvez superestimado) por Lévy, e os desafios contemporâneos do Direito — que precisa decidir sobre vínculos que são, ao mesmo tempo, emocionais, patrimoniais e midiáticos.
Cabe ao Judiciário tratar essa demanda como um caso de tutela emocional, um litígio contratual, ou uma disputa sobre direitos autorais e imagem? Não há respostas simples — mas o fato de a pergunta ser possível diz muito sobre os rumos da subjetividade e da juridicidade em tempos de hipersimulação.
A própria Suzana Ferreira, que trouxe essa estranha demanda a público, ainda não está à vontade com o tema, nem com a abordagem que se deve fazer. Em seu perfil no Instagram, ela declarou o seguinte:
“Confesso que fiquei muito magoada depois que encerrei o atendimento. Eu não tive maturidade profissional para receber a demanda. Depois fiquei pensativa sobre a rede social. Quando deixamos de pensar só na loucura do enredo, é, sim, uma situação muito interessante para quem adora o direito digital.Como eu resolveria essa questão do Instagram? Pertence a quem tem a nota fiscal da bebê reborn ? Não seria de quem criou a conta? O Direito Digital não é lindo? Eu fico louca com essas novidades 🤭“
Pelo que estamos vivenciando, logo advogados, juízes, promotores e procuradores terão que enfrentar essas perguntas.