O grande rival do Brasil no Oscar deste ano foi quase ferido de morte na disputa pela maior premiação do cinema mundial. Mas ainda resiste. Emília Perez, que concorre a 13 estatuetas – o recordista de indicações este ano – enfrenta uma perda impressionante de prestígio.
Tudo começou quando sua protagonista, a atriz trans Karla Sofía Gascón, que concorre com a nossa Fernanda Torres na principal categoria de interpretação feminina, teve resgatados vários posts publicados em 2020, em plena pandemia, postados agora com toda pompa e circunstância nas redes sociais.
Foi um deus nos acuda, diante de suas postagens racistas e preconceituosas. Logo ela, uma mulher trans, historicamente integrante de uma minoria discriminada e perseguida.
Nem mesmo o diretor do filme, o francês Jacques Audiard, saiu em sua defesa. Pelo contrário, fez críticas contundentes a ela. Claro, o cineasta pediu desculpas pelo fato e se disse indignado. Pode ter sido sincero. Mas, também, pragmático, já que concorre, ele próprio, a quatro Oscar: Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Filme Internacional e Melhor Filme (Audiard é também o produtor). E neste fim de semana dois dos mais importantes prêmios dos sindicatos serão entregues: o poderoso PGA Awards, dos produtores; e o DGA Awards, dos diretores.
Como se sabe, esses prêmios e mais o SAG Awards, dos atores, que anuncia seus vencedores no dia 23, são os mais fortes indicadores do que pode acontecer na premiação do Oscar no dia 2 de março.
Afora as polêmicas – que provocaram um derretimento no seu favoritismo às premiações- o fato é que Emília Pérez é um bom filme. Não, não é nenhuma obra-prima, longe disso. E nem se justificam as 13 indicações ao Oscar. Mas é um filme bastante original em sua proposta e competente em sua realização.
Original porque sua premissa causa, de saída, total estranheza. Um chefão de cartel mexicano do narcotráfico deseja ser o que sempre sentiu ser, uma mulher. Com a ajuda de uma advogada (Zoe Saldaña, super favorita ao Oscar de Atriz Coadjuvante), o poderoso Manitas se torna Emília Pérez (Karla Sofía Gascón).
Para contar essa história, o diretor e roteirista Jacques Audiard opta por fazer do filme um musical – e, também nisso, nos causa mais estranhamento. O resultado do que poderia ser uma salada indigesta é que a proposta funciona. Não para todos os gostos – sejam narrativos, estéticos, ou mesmo ideológicos.
Como um filme musical ele também se revela muito interessante. Em vez de fazer das canções e coreografias das danças parte da narrativa em si – como nos musicais clássicos do cinema americano -, Audiard faz a parte musical funcionar como comentarista da ação – do que acontece, vai acontecer ou já aconteceu. Para isso, assume o que os detratores de musicais sempre criticam nesse gênero cinematográfico: pausa a ação para a entrada da canção e da dança. Mas faz isso de forma diferenciada, inserindo esses comentários como clipes integrados à narrativa.
Nos musicais do cinema americano – como nos clássicos Cantando na Chuva (1952) de Gene Kelly e Stanley Donen; e A Roda da Fortuna (1953) de Vincente Minnelli, com Fred Astaire; – as canções fazem parte da narrativa, ou seja, exigem dos espectadores a cumplicidade com a magia do cinema, afinal, na realidade ninguém sai cantando no meio de uma conversa. Há claro a radicalização dessa magia, quando o filme inteiro é narrado de forma musical, como no clássico francês Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy, com Catherine Deneuve e música de Michel Legrand. Ou como no formato do genial Cabaret, de Bob Fosse, com Liza Minnelli, em que todos os números musicais acontecem no palco ou como encenação musical, funcionando, assim, também como comentarista da ação.
Por isso, Emília Pérez bebe mais na fonte de Cabaret, tanto no formato como na ousadia do tema e da história contada. Se o filme de Bob Fosse é um musical sobre a gestação do ovo da serpente do nazismo na Alemanha, Emília Pérez é a história impressionante de um bandido violento e assassino, um machão mexicano, que quer ser uma mulher – trans, obviamente.
O que isso implica? Alguns críticos viram na proposta de Audiard uma exploração estereotipada dos cartéis mexicanos, e uma manipulação da questão identitária dos transgêneros. Acho isso apenas simplificação e uma leitura ideológica do filme.
O fato é que o desejo de um bandido violento em ser mulher é tratado como o que é, ou seja, a realização de um desejo. E, a partir disso, quando se torna uma mulher trans, o chefão – que abandonou, claro, o narcotráfico simulando a própria morte -, se vê diante da possibilidade de redenção – daí o seu envolvimento com a questão delicada dos desaparecidos pela ação dos carteis (e dele próprio), criando uma Ong para ajudar as famílias dessas vítimas. Aquele bandido sanguinário tenta, sim, ser outra pessoa, alguém sensível e capaz de se redimir.
Mas, claro, um bandido do quilate de Manitas, mesmo na pele de Emília Pérez, não é merecedor de uma segunda chance. E a força do filme está exatamente nessa tensão que percorre cada cena, cada momento, cada clipe do longa.
A busca de uma redenção, a partir da realização de um desejo. Este é, no fundo, o tema de Emília Pérez.
Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista e editor de Cinema do Estado da Arte, do Estadão.
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